Sergipanidade: nota sobre um conceito.
O que é ser sergipano? O que nos identifica como tal? O que é sergipanidade? Estas perguntas surgem com mais recorrência quando se aproxima o “24 de outubro”, data cívica declarada como dia da “Sergipanidade”. Portanto, vamos comentar aspectos desse conceito e mapear suas possíveis origens?
Por Amâncio Cardoso.
Sabe-se que, conforme antropólogos, nossa identidade cultural se constitui num repertório diferenciado de lugares, práticas, objetos, saberes, valores e crenças com que se constroem fronteiras simbólicas entre as pessoas, e com que se configuram imagens de si e do outro. Assim, esse inventário de diferenças mobiliza e reaproxima pessoas que reforçam sentimentos de participação e de pertencimento a um grupo, dentro de determinado território. Em suma, tais objetos, saberes, valores, crenças, práticas e lugares são apropriados para a construção de sentidos de identidade.
Desse modo, historicamente, a construção de sentidos de uma identidade sergipana se iniciou no processo de autonomia política da nossa Província em relação à Bahia, entre 1820 e 1824, quando Sergipe se tornou uma unidade política, com governo próprio, e passou a administrar seu território e a controlar suas rendas.
Nesse período, elaborou-se uma desconstrução da relação com a Capitania da Bahia. Esta relação teve início em 1590, no bojo da conquista militar pelos luso-baianos do território aborígene, entre os rios Itanhy (rio Real) e Opará (rio São Francisco) até a assinatura do decreto real de emancipação por D. João VI, em 08 de julho de 1820. Há 200 anos.
O movimento de negação de ser baiano e a valorização do ser sergipano inicia-se na primeira metade do século XIX e perpassa o século XX. A partir de então, instituições, fatos cívicos, manifestações literárias e acadêmicas promoveram o sentimento e o sentido de distinção de "ser sergipano".
Configuraram-se, por exemplo, discursos memorialísticos e de limites do território; valorizando um passado singular; criando mitos fundadores, instituições guardiãs da memória coletiva e símbolos como a bandeira, o brasão e o hino, entre outros.
Quanto aos debates e aos embates jurídico-acadêmicos sobre a “Questão dos Limites” entre Sergipe e Bahia, um de seus ápices ocorreu em 1919, quando Ivo do Prado (1860-1924), Manuel dos Passos de Oliveira Teles (1859-1935) e Francisco Lima Júnior (1859-1929), autores de livros sobre o assunto, foram designados pelo Governo para representarem Sergipe no VI Congresso de Geografia, em Belo Horizonte. A missão dos três intelectuais, ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, foi discutir o problema dos limites territoriais entre os Estados vizinhos, em face da alegada perda de terras sergipanas situadas do lado sul e oeste da fronteira com a Bahia.
Ao fim e ao cabo, a Bahia ganhou uma das questões jurídico-administrativas que mais mobilizaram os sentimentos de pertencimento dos intelectuais da pequena unidade federativa.
Já no aspecto historiográfico, um livro referencial para demarcar Sergipe e os sergipanos, apresentando a singularidade de seu passado, foi a História de Sergipe, de Felisbelo Freire (1858-1916), publicado em 1891. Foi o primeiro esforço sistematizado de síntese sobre Sergipe; desde a ocupação religiosa do território, em 1575, até a transferência da capital de São Cristóvão para Aracaju, em 1855. A obra é uma espécie de “carteira de identidade” sergipana no campo historiográfico.
No âmbito institucional, a fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), em 1912, foi um marco ímpar para a reinvenção e consolidação da "Sergipanidade". Sobretudo através da produção acadêmica de seus membros em sua revista, cuja primeira edição é de 1913. Os textos da Revista do IHGSE, até hoje publicados, visam preservar a memória, estudando os aspectos histórico, geográfico e socioeconômico, com o propósito de consolidar uma identidade sergipana.
Os intelectuais do IHGSE passaram, desde o início do século XX, a publicar obras que forjaram produções discursivas sobre Sergipe, reelaborando uma identidade tanto do povo quanto do território. Vejamos alguns exemplos: Oliveira Telles (Sergipenses, 1903); Elias Montalvão (Meu Sergipe, 1916); Lima Júnior (História dos limites entre Sergipe e Bahia, 1918); Ivo do Prado (A Capitania de Sergipe e suas Ouvidorias, 1919); Clodomir Silva (Álbum de Sergipe, 1920; e Minha Gente, 1926); Armindo Guaraná (Dicionário biobibliográfico Sergipano, 1925); Prado Sampaio (Sergipe artístico, literário e científico, 1928); Felte Bezerra (Etnias Sergipanas,1950), e Carvalho Déda (Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano, 1967). Só para ficar em alguns exemplos.
No campo linguístico, uma obra de fundo, que registra formas singulares do falar dos sergipanos, é o Atlas Linguístico de Sergipe (ALS). Principiado em 1963, concluído em 1973, e publicado apenas em 1987, o ALS foi coordenado pelo professor Nelson Rossi (1927-2014), da UFBA. A pesquisa de campo para o Atlas abrangeu quinze localidades, distribuídas por cinco zonas fisiográficas do Estado, sendo o maior esforço de mapeamento linguístico em Sergipe.
Os mais recentes marcos institucionais de reinvenção de nossa identidade foi a inauguração da Fundação Aperipê, em 1985, e a instalação do Museu da Gente Sergipana, em 2010, pelo governo do Estado. Entre o final do século XX e início do XXI, essas instituições reforçaram a reelaboração simbólico-cultural do que seria a "Sergipanidade".
Por fim, em 2001, a Secretaria Estadual de Turismo criou o dia 24 de outubro como “dia da Sergipanidade”. Nessa data, os sergipanos celebravam a emancipação política de Sergipe, ao menos desde 1836. Mas ela foi mudada oficialmente para o dia 08 de julho, através da Emenda Constitucional nº 20, de 31 de maio de 2000, a qual reza em seu artigo 269: “Será feriado estadual o dia 08 de julho, data consagrada à Independência de Sergipe".
Nos últimos 200 anos (1820-2020), vimos que a elite intelectual e política de Sergipe forjou e reinventou, a sua maneira, discursos do que se convencionou chamar de "Sergipanidade".
Porém, não é ilícito acreditar que é nos ofícios e práticas do cotidiano; nos saberes da cultura popular e/ou erudita; nos lugares consagrados pela memória coletiva; nas crenças e valores representados nas formas de expressão; enfim, nas celebrações de rituais e festas que marcam a vivência coletiva, onde cotidianamente se reelaboram, material e espiritualmente, essa abstração do que entendemos como "Sergipanidade".
REFERÊNCIAS:
- ALBUQUERQUE, Samuel. Emancipação cultural de Sergipe. Disponível em: <http://www.primeiramao.blog.br>. Acesso em: 19/09/2019.
- AZEVEDO, Denio Santos; TECHIO, Elza Maria; LIMA, Marcus Eugênio. Identidade regional e memória coletiva em Sergipe. Revista Ponta de Lança. São Cristóvão, v.5, n. 10, abr. - out. 2010. p. 25-45.
- BRASIL/MINC. Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Brasília: IPHAN, 2000.
- FREITAS, Itamar. Historiografia sergipana. São Cristóvão: Edufs, 2007.
- ROSSI, Nelson; FERREIRA, Carlota et al. Atlas Linguístico de Sergipe. Salvador: UFBA-Instituto de Letras/FUNDESC-SE, 1987.
- IPHAN. Educação Patrimonial: Manual de aplicação. Brasília, DF: Ceduc, 2013.
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